
Manga, em foto dos arquivos do S. C. Internacional
As escolinhas de futebol e todos os clubes, grandes, médios e pequenos, deveriam apresentar a história de jogadores fantásticos em todo o mundo, que foram ídolos por onde passaram, ganharam dinheiro, uns, muito, mas muito dinheiro (principalmente dos anos 1990/2000 pra cá), mas que não souberam administrar a própria vida, principalmente fora dos gramados, achando que o período das “vacas gordas” nunca acabaria.
Quando me pedem para lembrar os maiores lances, gols e jogadas que nunca saíram e nem vão sair da minha memória, cito, de cara, da bomba disparada pelo Nelinho para o Cruzeiro, numa falta pertinho da área do Internacional, no Beira Rio, jogo decisivo do Brasileiro de 1975. A bola fez curvas, passou pela barreira e ia entrando, quando de repente, Manga, que já caía para o lado esquerdo, conseguiu voltar e defender. Inacreditável. E o Inter foi campeão pela primeira vez, ao vencer por 1 a 0.
Já li demais sobre o Manga e suas proezas dentro e fora de campo. Também já conversei demais sobre ele, com quem conviveu com a fera. Muitas coisas nada nobres, que hoje pertencem à história.
Ele se foi dia 8, terça-feira, depois de passar seus últimos anos contando com a solidariedade de fãs e jornalistas, como o Marcelo Gomes e equipe da ESPN, que o resgataram passando por dificuldades no Equador e o instalaram numa confortável casa no Retiro dos Artistas, no Rio.
Depois da morte, li dois textos sobre ele que indico: do Thales Machado, no O Globo, e do próprio Marcelo Gomes, da ESPN, um dos responsáveis diretos pelos últimos prazeres do Manga.
“Obituário: morre Manga, um goleiro que não deixou a vida passar”
Campeão, controverso e marcante, seja pelos títulos, idolatria ou mãos gigantes, Manga foi um dos goleiros mais importantes da História
Por Thales Machado — Rio de Janeiro
As mãos gigantes, os dedos tortos, a mania de jogar sem luvas. A manga longa, o short curto. O goleiro do time de Nilton Santos, mas também de Jairzinho. Ídolo no Botafogo, no Internacional, mas campeão também pelo Grêmio. Pernambucano e brasileiro que virou herói também em terras uruguaias. Campeão onde passou, polêmico na mesma medida. Manga, falecido no início da manhã desta terça, aos 87 anos, não viveu discretamente.
Fez jus ao seu 1,86m e à sua elasticidade para aparecer. Campeão, controverso e marcante: uma vida sem deixar nada passar, um sinônimo de goleiro. Um paredão.
O apelido de Haílton Corrêa de Arruda veio ainda no Sport, onde começou, ao ser comparado com Manga, grande goleiro do Santos. Mal sabia que se tornaria o “Manga do Botafogo”, grande rival do time da sua inspiração no futebol brasileiro da década de 1960.
E viu muito mais que duelos históricos entre Garrincha e Pelé. Quatro vezes campeão carioca (1962, 1963, 1967 e 1968) – além de três Rio-São Paulo – pelo time de General Severiano, Manga viu da sua área dois Botafogos que se confundem na história como um só. Era um jovem goleiro titular do time do Mané, de Didi e Nilton Santos, base da seleção nos títulos de 1958 e 1962; e um já experiente arqueiro na equipe que teve Gerson, Jairzinho e PC Caju, pilares do Brasil tricampeão no México em 1970.
Pela seleção, jogou apenas a Copa de 1966. Há quem acredite que não teve mais espaço pela personalidade polêmica. Dizia, por exemplo, que contra o Flamengo, “o bicho era certo”, dando como garantia o prêmio pela vitória contra o maior rival, irritando os rubro-negros antes das partidas. Bom, e era quase certo mesmo. De 1960, quando assumiu a titularidade de Ernâni, a 1968, quando foi para o banco para Cao assumir o posto, foram 30 clássicos entre Botafogo e Flamengo, com apenas seis derrotas para o rubro-negro. Mais da metade dos duelos (16) saíram com o alvinegro vencedor, e o bolso de Manga mais cheio.
Acusado por João Saldanha, que o indicara para o Botafogo anos antes, de se envolver em um suborno em partida contra o Bangu de Castor de Andrade, Manga quase tomou um tiro do jornalista quando foi tirar satisfações na festa do título carioca de 1967. Da confusão entre o bicheiro, o cronista e o jogador, uma história que agora vê o seu terceiro protagonista se despedir. Na época, foi também o começo do fim de sua trajetória no alvinegro, que ficou mais marcada pela quantidade de taças conquistadas do que confusões acumuladas – foram 20, no total, entre torneios oficiais e amistosos, a maior coleção individual da história do clube.
Dali pra frente, o goleiro, mesmo desacreditado, mostrou capacidade de ser ídolo também com outras camisas: foi tri gaúcho e bi brasileiro com atuações estonteantes no Internacional, voltando a conquistar o campeonato do Rio Grande do Sul, já veterano, pelo Grêmio, no fim da década de 1970.
Encerrou a carreira como campeão equatoriano em 1981, aos 45 anos, pelo Barcelona de Guayaquil. Antes, já vivera glórias maiores em outras línguas. Pelo Nacional, de Montevidéu, foram “só” um tetra uruguaio, uma Libertadores e um Mundial. As experiências e os amigos que fez fora do país o fizeram morar por anos no Equador e no Uruguai. Ganhou um sotaque espanhol, confundindo palavras entre o português e o castellano.
Esquecido, passou dificuldade quando os primeiros problemas de saúde começaram a aparecer.
Reencontrou o Brasil também através da solidariedade de quem o admirava em 2020. Torcedores, amigos e jornalistas o resgataram para cuidar da saúde no Rio de Janeiro, onde viveu seus últimos dias ao lado da mulher Cecília. Deixou também um filho. Recebeu, ainda em vida, quando já se sabia que eram os últimos anos, homenagens que o emocionaram e fizeram emocionar. Uma das últimas visitas que recebeu em casa, em dezembro, foi da taça da Libertadores, a mesma que ele conquistou em 1970 no Uruguai, agora tendo seu Botafogo como dono em 2024.
Agora torcedor ilustre, se emocionou, agradeceu, e desejou saúde ao alvinegro.
Após longa batalha contra o câncer de próstata, Manga se foi, e o 8 de abril virou o dia da sua morte. O 26 do mesmo mês, data do seu nascimento, virou há alguns anos o Dia do Goleiro, em sua reverência. Não haverá celebração dos seus 88 anos daqui a alguns dias. Mas, pra sempre, Manga estará consagrado. Nisso, o bicho também é certo. E sempre será.

Foto: x.com/Botafogo
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A última viagem de Manga
Marcelo Gomes, especial para o ESPN.com.br
Todo jornalista sabe o quanto é difícil vender uma pauta e/ou convencer seus companheiros de redação a apostarem em uma ideia, a princípio maluca. Comigo não foi diferente quando coloquei na cabeça que iria para Quito, no Equador, resgatar uma lenda esquecida do nosso futebol.
Tudo começou quando soube, por meio do sociólogo Paulo Escobar, que o sonho de Manga era visitar o Brasil e pela última vez ver seu Botafogo jogar.
Essa era a pauta: trazer Manga para o Brasil em no máximo quatro dias para realizar seu último sonho, segundo o próprio ex-goleiro.
Sorte a minha que tenho na chefia gestores sensíveis que acreditaram na ideia quase insana, pois para você ir até à capital equatoriana é preciso ter uma boa verba para realizar o que só seria mais uma reportagem especial.
A ida ao Equador
Assim, partimos eu e o repórter cinematográfico Fábio Lonardi, o Fabão, para Quito. Embarcamos em Guarulhos, e as cenas aqui no Brasil já eram quase de pânico, tudo porque a impiedosa COVID-19 ameaçava a vida global.
Fomos em 9 de março de 2020. No aeroporto internacional, já sentíamos um certo medo daqueles que circulavam em Guarulhos. Muita gente com máscara, mas ninguém certamente imaginava as quase 700 mil mortes que teríamos apenas no Brasil.
Depois de passar pelo Panamá, pegamos outro avião para a cidade com 2,8 mil metros e trá-lá-lá de altitude.
O pedido emocionado de Manga
No dia seguinte, ansioso para que encontrássemos o grande Manga, partimos para o bairro de Pichincha, onde aquele senhor vivia de aluguel com a esposa Maria Cecília Cisneros.
Frente a frente com o monstro dos dedos tortos e extremamente emocionado, começamos a entrevista.
No meio dela, a surpresa. Manga começou a chorar e pediu para que o ajudássemos a arrumar uma casita assim que ele chegasse ao Brasil, a fim de passar os últimos dias de sua vida.
E se tem uma coisa que eu não consigo separar no jornalismo é a emoção, ainda mais vendo e gravando um senhor de 82 anos chorando como criança.
Terminada a entrevista, pedi para o Fabão fazer as imagens de cobertura, fotos, reações, enfim… Saí da pequena casa para refletir como poderia ajudar, já que estávamos lá e já que a emissora havia comprado as passagens dele e da esposa para ir ao Brasil e, em seguida, retornar ao Equador.
Foi aí que me lembrei do Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro, e de seu presidente, o fantástico ator Stepan Nercessian. Um botafoguense roxo e uma alma supercaridosa e preocupada com a memória dos nossos artistas.
“Golaço, Fabão!”
Nossa viagem de volta ao Brasil estava marcada para a noite do dia 12. Na manhã do mesmo dia, Stepan atendeu ao pedido. A ideia era colocá-lo como o primeiro residente do futebol na instituição. No carro, em direção à casa de Manga, gritei: “Golaço, Fabão!”. E a pauta mudou a partir dali.
Ao buscar Manga e a esposa já para a viagem ao Brasil, passamos em um restaurante onde almoçamos todos os dias. Lembro até que Cecília me recomendou fritada, um delicioso prato local.
Estranho foi chegar ao restaurante, sempre lotado, mas daquela vez vazio, com o dono de olhos arregalados com o anúncio da pandemia.
Sem jamais passar pela minha cabeça o negacionismo, juro que pensei o tempo todo de forma positiva para que chegássemos ao Brasil com nossas saúdes em dia, mas não tinha jeito, o medo assolou.
As sair do restaurante, com as ruas completamente vazias, avistamos um funeral em que equatorianos carregavam um caixão fúnebre pela avenida.
A volta ao Brasil
No aeroporto, também praticamente vazio, acredito que fizemos parte do último voo com saída de Quito para outro país.
Meu maior temor era que o maldito vírus pegasse Manga e Cecília, pois o casal já tinha idade avançada. No voo até o Panamá, tudo bem. Avião vazio com a tripulação tentando amenizar o sofrimento dos poucos passageiros que não sabiam se seriam infectados ou não.
A tranquilidade durou pouco. Quando chegamos ao Panamá, estava um caos para voltar ao Brasil. Tudo porque o avião que nos levaria estava lotado de turistas vindos dos Estados Unidos.
Solicitamos que Manga usasse máscara, e assim ele o fez.
Desembarcamos no Rio de Janeiro na sexta-feira, 13 de março de 2020.
Manga no Rio de Janeiro
Levamos Manga, no mesmo dia, a um treino do Botafogo para falar com Paulo Autuori, Gatito Fernández, enfim, para ser recebido pelos atletas do Fogão que iria jogar com o Bangu no domingo seguinte.
Levamos também o ex-goleiro para reencontrar o filho que ele não via há anos.
Manga não estava bem financeiramente. Para se ter uma ideia, o único dinheiro que ele levou para a viagem eram US$ 10. Mesmo assim, até ali, não falei nada para o casal que eles seriam recebidos para morar no Retiro dos Artistas.
Assim como muitos jogadores, Manga não se programou para a aposentadoria. Ainda jogador, se envolveu com jogos e cassinos, nos quais torrou parte de suas economias.
Teve até um dia, antes do encontro com Stepan, que Manga me chamou no quarto pedindo US$ 500, um pedido impossível de atender. Mas a mudança de pauta já transformaria a vida dele.
A grande surpresa
Na segunda, dia 16 de março, levamos o casal para a grande surpresa. Stepan e equipe do Retiro dos Artistas aguardavam para o anúncio.
Manga mais uma vez se emocionou com a tão sonhada casita.
Stepan só pediu para que fizéssemos uma campanha para reformar e mobiliar a nova casa do casal.
Foi uma mobilização fantástica. Em dois dias, arrecadamos R$ 17 mil, com ajuda de jornalistas como como Paulo Vinícius Coelho, o PVC, Milton Neves e outros artistas do Rio, além da torcida que também vestiu a camisa de Manga.
Era só alegria até que descobrimos que o aeroporto de Quito estava fechado por conta da COVID-19.
E agora? O que fazer com Manga e Cecília, que voltariam para o Equador no mesmo dia 16?
Mais uma vez, sorte do repórter que foi acolhido pela ESPN e sua diretoria, e sorte do Manga, que ficou por quase três meses em um hotel quatro estrelas com tudo pago até que a casita pudesse ser reformada e habitada.
Com todo esse histórico, é impossível separar o profissional jornalista do carinho e da gratidão que adquiri pelo ídolo de tantos times.
Manga e Cecília foram morar na casita dos sonhos.
A mudança e a viagem final
Acostumado com um luxo que há décadas não tinha mais, logo começou a reclamar da distância da residência, que fica mesmo bem distante do portão de entrada do Retiro; logo, disse que não gostava da comida que era feita para todos os artistas residentes; e, logo, decidiu sair de lá para morar em um apartamento melhor, que, segundo Cecília, o presidente do Botafogo iria doar.
Confesso que não entendi direito porque o casal quis sair de um lugar onde eles tinham tudo, plano de saúde de graça, cinco alimentações por dia, sem custo de luz, água, enfim…
Faz um ano que perdi o contato com os dois, mas lembro com carinho de quando o casal me chamava de hijo pustiço.
Com o plano de saúde, Manga fez várias cirurgias no intestino, mas eu sabia que o câncer não lhe daria uma vida longa. Assim como outro grande amigo, Wlamir Marques, Manga morreu aos 87 anos nesta terça-feira, 8 de abril de 2025.
Ficam as memórias de um goleiro lendário, ídolo de Botafogo e Internacional, e vai-se embora o homem, um cara cheio de erros e acertos, como todos nós.
Descanse em paz, lenda de grandes mãos, defesas e dedos quebrados bravamente.

Manga durante homenagem no Estádio Nílton Santos, do Botafogo Vitor Silva/Botafogo
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